terça-feira, 16 de agosto de 2011

CULTURA AFRICANA NO BRASIL


Manifestações culturais afro-brasileiras

            À medida que o africano se integrou à sociedade brasileira tornou-se afro-brasileiro e, mais do que isso, brasileiro. Usamos o termo afro-brasileiro para indicar produtos das mestiçagens para os quais as principais matrizes são as africanas e as lusitanas, freqüentemente com pitadas de elementos indígenas, sem ignorar que tais manifestações são acima de tudo brasileiras. Essas misturas estão muito mais presentes do que podemos perceber a um primeiro olhar, mesmo que este já mostre uma quantidade importante de contribuições africanas em nossa formação.
            Além dos traços físicos, talvez seja na música e na religiosidade que a presença africana esteja mais evidente entre nós. Como vimos, a religião tem lugar central nas culturas africanas, sendo a esfera de onde vem toda a orientação para a vida, a garantia do bem-estar, da harmonia e da saúde. No Brasil as religiões africanas foram transformadas, ritos e crenças de alguns povos se misturaram com os de outros, e com os dos portugueses, mas nesses processos muitas características africanas foram mantidas.
Mais atrás, quando falamos do Brasil escravista, vimos a importância e a disseminação dos calundus, em torno do quais grupos de africanos e afro-descendentes se reuniam para reverenciar espíritos capazes de proteger, de curar e de orientar os que a ele recorriam. Os calunduzeiros e calunduzeiras mais famosos eram procurados até por brancos, senhores de escravos e mesmo padres, que tendo esgotado os outros recursos a que estavam mais acostumados, como missas, rezas, chás, sangrias e emplastros de ervas, buscavam nas religiões africanas solução para os males que o afligiam. A partir do século XIX, esse papel foi ocupado pelas mães e pais-de-santo dos candomblés da Bahia, do Rio de Janeiro, do Maranhão, de Porto Alegre e das umbandas do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais e de Goiás. À medida que deixavam de ser perseguidas, as diversas religiões afro-brasileiras, praticadas em todo o Brasil, ganharam mais força do já tinham. Freqüentadas não só pelas comunidades negras, mas também por pessoas de outros grupos sociais, que buscavam soluções novas para seus problemas, os cultos afro-brasileiros cresceram sempre, não só pelo aumento natural da população, mas também dos adeptos dessas religiões. (...)
Além de ser central nos cultos religiosos, a música de influência africana, na qual o tambor geralmente é o instrumento mais importante, também é fundamental em muitas outras ocasiões de festas e danças. Ao lado do tambor, outros instrumentos, como o berimbau, o agogô e o reco-reco, se juntaram aos de origem lusitana, como o pandeiro, a viola e a rabeca, e são utilizados em grande variedade de danças e festas. Nas congadas, maracatus, capoeiras e reisados os ritmos africanos estão na base da música tocada. Também os sambas de umbigada e de roda, os jongos, o frevo e muitas outras danças têm passos mais ou menos fiéis àqueles que realizaram os primeiros africanos e afro-descendentes que dançaram em terras brasileiras. Hoje em dia as danças populares tradicionais estão cada vez mais restritas a grupos que se empenham em preservar as tradições, ou então àqueles que vivem mais isolados e, portanto menos abertos às mudanças introduzidas pelos meios de comunicação.
Entre as danças populares mais comuns em todo o Brasil está o bumba-meu-boi, ou boi-bumbá, espécie de teatro dançado e cantado no qual é contada uma história que se repete mais ou menos igual, na qual um empregado da fazenda mata o boi preferido do patrão para satisfazer o desejo de sua mulher grávida de comer carne, vendo-se depois numa enrascada. A  situação é resolvida por meio das forças mágicas usadas por um feiticeiro, que faz o boi ressuscitar e tudo fica bem no final. Essa brincadeira que vai caindo em desuso, com os jovens preferindo formas mais modernas de diversão, deu origem a uma das maiores festas populares da atualidade, o Boi de Parintins, no qual os elementos indígenas ganharam primeiro plano, sobrepondo-se à influência de culturas africanas, em muitas das quais o boi é um elemento central e cujos ritos mágico-religiosos estão presentes na cena da ressurreição do boi. (...)
Ainda no que toca aos aspectos materiais da vida é bom lembrar que muitas técnicas de produção e de confecção de abjetos foram trazidas para o Brasil por africanos, que além da sua força de trabalho também nos deram alguns de seus conhecimentos. Ferreiros, mineiros, oleiros, tecelões, escultores, além de pastores e agricultores, estiveram entre os escravos traficados, mesmo que não em grande número, uma vez que também eram muito valorizados em sua terra natal ou em terras vizinhas, para as quais foram levados como escravos, sendo lá mantidos e não enviados para as rotas atlânticas. Os artesãos e especialistas trouxeram não só suas técnicas mas também seus padrões estéticos, presentes nas formas, nas decorações, nas cores das coisas que faziam. Várias técnicas de tecer cestas, amplamente utilizadas entre as populações rurais brasileiras, se assemelham mais às africanas do que às dos indígenas, que também tinham uma cestaria de alta qualidade.
Quanto à maneira de modelar e cozer o barro, utilizada para a confecção de uma variedade de recipientes que ainda hoje são usados nas áreas rurais apesar da crescente penetração dos produtos industrializados, seguem mais de perto as técnicas indígenas. Mas, muitas vezes, padrões portugueses e africanos se misturam, resultando em produtos de grande criatividade como as moringas antropomorfas que servem cada vez menos para guardar água e cada vez mais para decorar as casas de camadas urbanas que resgatam e valorizam as tradições populares. (...)
Para além da força das formas e dos símbolos gráficos nas sociedades africanas, a oralidade, a fala, é instrumento de comunicação mais direta, e elemento central na transmissão do conhecimento acerca das coisas do passado e na educação das pessoas conforme os padrões de comportamento de cada grupo. Os nomes são carregados de significados que indicam várias coisas acerca das pessoas e dos objetos. Os provérbios e frases enigmáticas para os de fora do grupo são centrais na expressão de sentimentos, idéias, críticas e reivindicações. O aspecto educador da palavra é central. É por meio dela que a história é guardada e transmitida, garantindo a manutenção da identidade particular que une os membros de um grupo e os diferencia dos que pertencem a outros grupos. Também no Brasil os contos, provérbios, mitos de origem dos orixás, das linhagens que governam os terreiros, as palavras utilizadas nos ritos religiosos e nas adivinhações, transmitidas dos mais velhos aos mais moços, são um aspecto central das comunidades negras. (...)
A importância da palavra entre as sociedades africanas reaparece numa das mais fortes manifestações afro-brasileiras contemporâneas: o rap. Nele, a força da musicalidade africana está presente em circuitos que unem os negros dos Estados Unidos aos negros do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo. Tanto os ritmos marcados e repetitivos, como a força da palavra, e especialmente da palavra cantada, remete a características das sociedades africanas. Além de narrar fatos do cotidiano e fazer a crônica dos acontecimentos, como fazem as sociedades africanas, as letras das músicas de rap denunciam a opressão e a marginalização a que estão submetidos os habitantes das periferias dos grandes centros urbanos, em sua maioria negros e mestiços. Geralmente acompanhando a música há um tipo específico de dança, conhecido como break, no qual as marcas africanas também são evidentes. Não mais o requebro de quadris e o meneio de ombros presentes no samba, mas a quebra dos movimentos na qual a parte superior e a parte inferior do corpo se tornam quase independente uma da outra, o que também é tipicamente africano.
O rap surge em um momento em que a adoção dos valores do mundo branco dominante não é mais vista como necessária no caminho da ascensão social e em que as raízes africanas são valorizadas em vez de negadas. A contestação da ordem social e a denúncia da violência presentes nas letras desse gênero musical fazem parte de um movimento de valorização da negritude que tomou corpo a partir da década de 1960. Nelas não há mais a visão de um país no qual as deferentes raças convivem em harmonia, sendo expostos os conflitos, os privilégios e as diferenças sociais entre brancos, negros e mestiços. Além de denunciar a opressão e a violência que pesam sobre as populações da periferia, os grupos de rap muitas vezes se engajam em atividades que visam enfrentar os problemas dessas comunidades, como promoção de oficinas e palestras voltadas para o aperfeiçoamento profissional e intelectual das pessoas. Dessa forma, apesar de serem vistos com suspeita pela opinião pública, sendo acusados em alguns casos de incitar à violência em virtude  da crueza das letras que cantam, muitas vezes, além de serem canais de denúncia da exclusão e da marginalidade dos afro-brasileiros, empreendem ações que buscam solucionar os problemas que afligem esses grupos e, portanto, uma transformação na ordem social em vigor.



Bibliografia:
África e Brasil Africano
Marina de Mello e Souza
Editora Ática    

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